quinta-feira, 21 de julho de 2016

VINICIUS DE MORAES

RECEITA DE MULHER

Rio de Janeiro , 1959

As muito feias que me perdoem 
Mas beleza é fundamental. É preciso 
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso 
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture 
Em tudo isso (ou então 
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa). 
Não há meio-termo possível. É preciso 
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito 
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto 
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. 
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche 
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso 
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas 
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços 
Alguma coisa além da carne: que se os toque 
Como o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos 
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro 
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e 
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem 
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então 
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca 
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência. 
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos 
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas 
No enlaçar de uma cintura semovente. 
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras 
É como um rio sem pontes. Indispensável 
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida 
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios 
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca 
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas. 
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebal 
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal! 
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas 
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem 
No entanto sensível à carícia em sentido contrário. 
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio 
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!) 
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos 
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão 
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre 
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos 
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face 
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior 
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras 
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes 
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e 
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão 
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta 
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. 
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos 
Ao abri-los ela não mais estará presente 
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá 
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber 
O fel da dúvida. Oh, sobretudo 
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo 
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade 
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma 
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre 
O impossível perfume; e destile sempre 
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto 
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina 
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição 
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Poesia / Poema

Meu despertar no silencio






Madrugada, acordei e pude ouvir teu silêncio, fazia tempo que isso não acontecia, fazia tempo que seu silêncio, não me despertava, que seus pensamentos não me chamavam a ouvir te, de longe, muito longe um barulho de buzina, entra como personagem estranho, nesse emaranhado de silêncio onde consigo ouvir meus pensamentos, consigo repassar momentos vividos, sentir sensações esquecidas, fazer um inventario do tempo, a madrugada sempre foi pra mim um lugar mágico, uma mistura de medo e alegria, o tempo parado do tempo que não para, a linha fina que separa o real do transitório, lugar onde as palavras ganham sentido, sem serem ditas, ao acordar assim no meio da madrugada me sinto presente na ausência do outro, sozinha ou acompanhada, esse despertar da madrugada, é momento de me ver, sentir e compreender, momento que não permite invasão, encontro marcado com tudo que sou, madrugada, poderia assim dizer tempo de embarque, de chegada e partida onde todos que chegam e partem sou eu, onde todos os conhecidos são partes minhas, onde a realidade se faz presente na mais pura das ilusões, estou contigo nesse momento, estou desperta nesse tempo mágico, sentindo meu corpo, minha alma, presente em mim...onde o despertar significa adormecer, pra te encontrar preciso ter passado pelo mundo do sono, ter me despido das minhas máscaras e bebido da água onírica, que me banha e me prepara para ti...


Por Maria Medina  -  Pedagoga