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precisamente do site que muito gosto Estado de Direito lá do Rio Grande do Sul
abordando um assunto pertinente a nosso blog a “Educação”
26 de
abril de 2015 | Jorge Barcellos
Jorge Barcellos – Doutor em
Educação pela UFRGS, Chefe da Ação Educativa da Seção de Memorial da Câmara
Municipal de Porto Alegre.
Uma obra
que deve ser de leitura obrigatória dos operadores de direito acaba de chegar
ao Brasil dois anos após seu lançamento na França. Sobre o Estado,
de Pierre Bourdieu (1930-2002), do autor de Questões de Sociologia, é
a maior obra dos diversos cursos que proferiu ao longo dos vinte
anos em que foi professor de Sociologia do prestigioso Collège de France. Como
as aulas de Michel Foucault e Jacques Lacan, que geraram inúmeras obras, Sobre
o Estado é apresentado como a primeira de futuras publicações dos
seminários de Bourdieu no Collège, além de seus cursos na École Pratique des
Hautes Études (EPHE) e na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS).
Bourdieu
ministrou vinte e quatro aulas sobre o Estado em um curso de três anos, entre
dezembro de 1989 e dezembro de 1991. As edição das aulas foram fixadas por
Patrick Champgane, Remi Lenoir, Franck Poupeau e Marie-Cristine Rivière a
partir dos textos escritos, comentários orais e anotações nas margens dos
textos num processo de transcrição que passou por ligeiras correções
estilisticas para preservar o tom didático assumido por Bourdieu em suas aulas,
talvez um dos maiores méritos da publicação. De facil leitura, a obra trata de
tema já introduzido pelo autor em um capitulo de A Nobreza de Estado e
em artigos no final dos anos 70. A rigor, a palavra “Estado” só aparece nos
livros de Bourdieu publicados a partir do início dos anos 80, a partir de sua
aula inaugural no Collège de France. Por diversas vezes, Bourdieu se referiu ao
conceito de “Estado” sem expressá-lo diretamente, referindo-se a ele como
“ideologia dominante”, “representação política”, “ciências do governo”, etc.
Não fazia uma análise crítica quando usava expressões como “Estado-providência”
ou “Estado-nação”. Um artigo intitulado “Descrever e prescrever: as
condições de possibilidade e limites da eficácia política”, chegou a circular
nos cursos de graduação em ciência política, mas não era suficiente para dar
uma ideia geral da concepção de Bourdieu sobre o Estado.
A
publicação de Sobre o Estado vem para suprir esta lacuna entre
os leitores de Bourdieu. Superando a concepção marxista que vê o Estado como
“aparelho a serviço da classe dominante”, Bourdieu enuncia a sua de
estado como “instância oficial, reconhecida como legitima, isto é, como
detentora do monopólio da violência simbólica legitima” em 1984, na primeira
edição de Homo Academicus, um fascinante estudo sobre as relações
de poder no meio universitário. Quer dizer, até a publicação de Sobre o
Estado, Bourdieu oscilou entre uma concepção de estado como instituições e
agentes sociais, que são produtores/produtos do Estado.
A razão
disso é a dificuldade que há, para os franceses, de distinguir entre serviço
burocratizado e serviço público, isto é, elaborar um conceito do que seja um bem
público propriamente dito. Sobre o Estado, de certa forma, é
um “cavalo de batalha” para pretensões engajadas do autor: foi na época das
aulas que originaram esta obra que Bourdieu volta sua crítica às
políticas neoliberais, justamente as que retiram a responsabilidade social do
Estado e pregam o desmantelamento da coisa pública. Bourdieu era totalmente
contrário a esse movimento e o estudo do Estado aprofunda o estudo de sua
famosa teoria dos campos porque trata de incluir o campo das instituições estatais.
A importância do estudo do Estado, para Bourdieu é evidente: é o campo por
excelência, é o campo onde desaguam as lutas efetuadas nos diferentes campos –
econômico, artístico, etc.
As fontes
utilizadas por Bourdieu já foram utilizadas em estudos anteriores: seja suas
pesquisas feitas na Cabília, seja sua pesquisa feita com camponeses do Béarn ou
ainda seus estudos sobre alta função pública, oque vemos em Sobre o
Estado é a elaboração de um modelo genético do Estado central a todas
as formas de dominação. Na situação do curso elaborada por seus editores emerge
a síntese da proposta: “O Estado não se reduz a um aparelho de poder a serviço
dos dominantes nem a um lugar neutro de reabsorção dos conflitos: ele constitui
a forma de crença coletiva que estrutura o conjunto da via social nas
sociedades fortemente diferenciadas “(Sobre o Estado, p.493).
Bourdieu inicia seu curso
recuperando a tradição de estudos do Estado na obra de Perry Anderson e
Barrington Moore. Por esta razão, concentra-se na gênese do estado francês e
inglês tanto para ver a gênese da lógica estatal como a emergência do campo
burocrático. Bourdieu vê a burocracia como um campo, mas também como o lugar
onde recursos e lutas sociais estão em jogo. Nela está a origem da
concentração do monopólio da violência, numa inspiração que remete aos estudos
de Norbert Elias e Charles Tilly que oferecem, de um lado, a ideia da
concentração da força armada a partir da burocracia e por outro, a ideia da
concentração do capital econômico na cidade “O Estado é o principal produtor
dos instrumentos de construção da realidade social”, diz Bourdieu. Ele resgata
ao longo da obra o fato de que os ritos do Estado produzem divisões sociais e
difundem princípios de divisão e organização da visão de mundo das demais
classes sociais. A sua afirmação do “Estado como campo em que se
desenrolam lutas tendo por objeto o poder sobre outros campos” é uma das mais
brilhantes concepções de poder, mas é, ao mesmo tempo, problemática para os
pesquisadores: como narrar simultâneas lutas sociais? Não deixa de ser
fascinante, no entanto, a ideia de que o capital jurídico é apenas um
aspecto do capital simbólico encarnado na esfera do Estado: é por esta razão
que, combinando monopolização e universalização do poder, Bourdieu nos apresenta
uma proposta fascinante para a compreensão do estado moderno sob a influência
neoliberal.
Bourdieu
começa suas aulas analisando o Estado dinástico em primeiro lugar para depois o
Estado “estatal”, quer dizer, faz um caminho que vai “da casa do rei à razão de
estado“ onde o triunfo do estatal é apenas o campo no qual são construídas um
conjunto de novas realidades pelas ” instituições participantes do público” .
Bourdieu descreve em suas aulas como inventa-se as instituições burocráticas do
Esado que vão do escritório ao secretário, de assinaturas à decretos e toda uma
série de registros descritos em um método que muito se assemelha a genealogia
proposta por Michel Foucault. A diferença fica no fato de que, enquanto para o
primeiro, o espirito do marxismo se faz presente na defesa da ideia de
dominação, no segundo, a crítica à ideia de dominação se faz pela defesa da
existência do que Foucault chama de “dispositivo”. O que tem repercussão na
análise de fatos contemporâneos: assim, não é possível mais compreender, por
exemplo, a natureza do estado brasileiro sem analisar a constituição dos
elementos de seu universo burocrático e o poder que o Estado assimilou no
período republicano, eis a primeira inspiração de Sobre o Estado.
Mas há
mais. O que é inovador na obra de Bourdieu é a descrição da dimensão simbólica
do Estado, isto é, sua visão dele como espaço de relações de força e
sentido, produtor de princípios de classificação, de estruturas mentais, numa
espécie de “teoria materialista do simbólico [que] tem que dar conta dessa
obediência generalizada de que se beneficia o estado sem apelar a coerção”
(Sobre o Estado p. 22). Ora, não foi exatamente este o ponto dos movimentos de
junho, uma revolta contra a obediência ao Estado protagonizado pelos jovens?
Por esta razão, em suas aulas Bourdieu dá um papel especial ao nascimento dos
parlamentos na França e Inglaterra no séculos XVIII: é ali que está o
nascimento da autonomia da esfera política, é ali que se dá propriamente o
nascimento da razão política, alí é o lugar da gênese daquilo que
se convencionou chamar de razão de estado “ele se autonomiza,
se diferencia e, porque se diferencia, torna-se o lugar de uma luta” (Sobre o
Estado, p.117). À maneira de Marshal Sahlins, Bourdieu combinando a história dos
indivíduos com a estrutura e mostra que os parlamentos são a mais dinâmica das
estruturas do Estado porque são o “lugar onde, sobre problemas
conflituosos que opõem grupos de interesse, debate-se de acordo com as formas,
segundo as regras, publicamente’ (Sobre o Estado, p. 145.). Por essa razão, a
metáfora do teatro é apropriada para descrever a política, já que sempre “há
pessoas que puxam os fios e que as verdadeiras implicações estão em outro
lugar” mas isso não quer dizer que não faça sua enérgica defesa adiante “o
parlamento é o lugar da política legitima, o lugar em que se institui uma
maneira legitima de formular e regular os conflitos entre os grupos” (Sobre o
Estado p.199).
Outro ponto de notável intuição
de Bourdieu em suas aulas refere-se a constatação da existência de um “mercado
jurídico” já no século XII na Europa definido pela existência de vários
direitos mutuamente exclusivos nas jurisdições laicas à religiosas e dos comuns
às das cidades. Ora, não estaria aí a origem da enorme complexidade – para
evitar o termo “confusão” – existente hoje no campo da interpretação jurídica
dos operadores de direito? Quer dizer, para a constituição do estado moderno é
problemático que o próprio campo do direito esteja em estado de tensão
permanente, de conflito de produção legal e sua interpretação, eis a
questão. E o que dizer da descrição que Bourdieu faz das relações entre o rei e
o parlamento? Ora, ao questionar que tipo de poder tem o parlamento na época da
monarquia, ele mostra que ali foi o parlamento que impôs um limite a ação dos
reis – através dos selos reais o que sugere pensar, por que “cargas d’água” o
parlamento atual é tão subordinado ao Poder Executivo, por que não
consegue impor seus limites.
A edição
da Cia das Letras é bem cuidada, com a tradução primorosa de Rosa Freire de
Aguiar e tem uma vantagem de possuir em relação ao original francês da Editions
Raisons d’Agir uma introdução de Sergio Miceli, um dos responsáveis pela
divulgação do pensamento de Bourdieu no Brasil. Orientado pelo próprio Bourdieu
no clássico da sociologia brasileira no seu Intelectuais e Elite
Dirigente no Brasil, Miceli enfatiza na análise de Bourdieu o papel central
que os juristas tiveram na transição do estado absolutista para o moderno, o
que sugere, aos estudiosos do Estado brasileiro o estudo sobre o papel dos
advogados, procuradores e de todos os atores diretamente ligados à justiça no
corpo do estado como também dos parlamentos “os juristas se aferraram à
elaboração de justificativas em favor de uma única jurisdição”, afirma Miceli,
o que, de nosso ponto de vista, é uma sugestão inestimável de pesquisa: não
estaria nas origens da burocratização do estado brasileiro o papel proeminente
que adquiraram advogados e procuradores na condução de processos de estado.Quer
dizer, tais atores, suas interpretações e tecnologias, como funcionários da
burocracia, não terminam por dar a sua função uma fachada racional e
transparente enquanto exercem do interior do Estado uma armadura cujo único
objetivo é exercer poder? As propostas de Bourdieu em Sobre o Estado são de
grande atualidade, exatamente como Miceli mostra em relação a votação da Ação
Penal 470, o Mensalão, mas basta uma varredura, no Executivo e no Legislativo,
para encontramos inúmeros outros exemplos, outra razão para lermos Bourdieu
urgentemente.
SOBRE O ESTADO .Autor: Pierre
Bourdieu. Editora Cia das Letras, julho de 2014
Tradução: Rosa Freire de Aguiar